carta aberta aos figurantes da minha vida
a afeição que me tornou uma grande narradora de desconhecidos
de cinco vezes que eu piso fora de casa, em quatro delas eu vejo o mesmo cara. ele é bem marcante: tem dreads grossíssimos e é muito magro. aparentemente somos da mesma vizinhança, mas nossos encontros ultrapassam a jurisdição do bairro: a vez mais chocante pra mim foi quando o vi na recepção do dentista, a muitos ceps de distância.
em uma dessas sexta-feiras em que tudo é permitido, minha terceira parada da noite foi um samba. cheguei naquele horário em já tocou “o show tem que continuar” duas vezes. no meu primeiro scan do ambiente, flagrei esse rapaz – zero surpresas até aí. estivesse você bebendo ou não, a vibe coletiva era de ebriedade, acredito que foi o que o inspirou a perguntar meu nome. respondi, ao que ele completou com “só isso mesmo”, e não falou comigo nunca mais. foi aí que eu entendi que ele tinha quebrado a quarta parede entre nossas histórias: pra ele, a figurante era eu.
veja bem, não teve nenhuma malícia nessa interação, ele estava até acompanhado. nada na entonação dele indicava segundas intenções, apenas uma dúvida genuína, o que eu respeitei muito. já o encontrei dezenas de vezes depois desse impulso tão nobre, mas nada mudou na nossa dinâmica. seguimos como completos desconhecidos, mas agora como desconhecidos que se humanizam. olha lá aquele desconhecido indo fazer mercado! lindo isso.
venho de uma cidade em que ver os mesmos rostos em diferentes contextos é mais do que esperado. ainda assim, sempre tiveram aqueles que apareciam com mais frequência, em cenários indecifráveis, e que eu não sabia nada sobre – pelo menos o quanto é possível, sendo escritora: eu sempre posso inventar. e foi o que fiz com todos os figurantes da minha vida. nenhum deles ficou no anonimato, todos foram promovidos a elenco secundário apenas pelas peripécias da minha mente. a escrita traz essa enfermidade de se importar com tudo muito mais do que o necessário, mas quando aquele rapaz cedeu ao pensamento intrusivo de me abordar, tudo se tornou muito mais leve: estamos todos nos vendo, no fim das contas?
provavelmente não. têm pessoas que passam ilesas pela condenação da escrita, e pra elas os arredores não devem ser tão interessantes. esse deve ser um jeito entediante de viver, mas certamente te poupa de alguns desconfortos, como quando estava em um show e vi de longe um amigo. o cumprimentei com a alegria que essas situações pedem, e foi só quando vi a expressão confusa dele que lembrei que, na verdade, não somos amigos coisa nenhuma; ele é só um cara que vejo com frequência na academia, e por quem criei muita afeição porque ele gosta de fazer escada como eu. sem graça, ele me perguntou se nos conhecíamos, e, ainda mais sem graça, eu disse que frequentamos a mesma smarfit. ainda assim, ele não lembrou de mim.
eu não só tropeço nos meus figurantes por aí; eu os procuro. a história deles (que eu criei) é importante pra mim, e eu tenho um alinhamento quase cósmico de que eu vou, sim, completá-las. isso ficou claro quando eu saí de 2 para 6 milhões de habitantes e os enredos não sumiram, como esperado, e sim engrossaram: eu sempre estou no lugar certo e na hora certa para assistir meus personagens se desenvolverem – ou eles, pra me entreter.
da minha janela no rio, vi um casal nascer. eu já tinha certo interesse nesse apartamento porque o pai da família que mora lá fuma maconha, e acho isso super moderno. em uma das minhas espiadas, vi o filho dele pela primeira vez, acompanhado de uma garota. eles dois são bem mais novos e descolados do que eu, e passaram o dia na varanda – ele tocando violão, ela assistindo, vestindo as roupas dele. o clássico cenário de quando você dorme na casa de um pretendente pela primeira vez. estou convencida que aquele foi o dia que eles se conheceram.
não os vi mais pela janela, e não foi por falta de tentativa. provavelmente a relação evoluiu pra um nível em que eles não precisam mais dessa varanda performática e passaram a habitar outros cômodos da casa. eu sei que continuou porque passei a os ver muito na rua, perto de casa: a caminho do metrô, indo do mercado para o prédio; trajetos cotidianos. em todas as vezes, me senti uma espectadora muito privilegiada – se ao menos eles soubessem.
eu me mudei do rio, algo que prefiro não falar sobre. quase dois anos depois dessa tragédia, voltei e me reencontrei na história de outras pessoas, como sempre acontece. em uma festa no centro, muito longe das nossas casas, vi aquele casal que acompanhei nascer, curtindo a noite como nunca, com os amigos igualmente jovens e descolados. eu quis fazer como meu colega de samba e perguntar seus nomes, contar que vi tudo começar, ou só pedir carona pra casa; mas fiz o sensato, que foi nada. se ao menos eles soubessem.
tenho outra relação parassocial com uma figurante da minha vida, mas essa é mais agridoce, como normalmente é com mulheres. nesse caso, não sei se é mútuo ou quase doentio de tão unilateral. podemos estar vivendo uma situação totalmente girl, so confusing – ou não. exatamente por essa dúvida procuro por ela em todo lugar, e tendo a encontrar; até no show da lady gaga no meio de 2 milhões de pessoas em um estado que não moramos. seja o que for que existe entre nós, depois de vê-la, sempre fico feliz – depois de ver qualquer um deles, na verdade.
no fim do dia, eu sou humana também: gosto de me saber vista, como qualquer pessoa. ainda assim, a sensação que mais me agrada é a de ser narradora de todas essas pessoas – principalmente porque elas realmente existem.
amei muito
Cara Bia, quanta sensibilidade nessa história. Adoro a perspectiva de se ver e entender figurante na vida de outras pessoas também. Parabéns pelo texto!