Fone de ouvido como acessório e outras armadilhas do capitalismo
ainda é possível usar fone de fio?
a rebeldia dos anos formação me fez muito resistente a tendências. até hoje, tenho o costume de me esquivar de certos costumes de consumo até ultrapassar o cool e restar puramente o idiota. exemplo: eu usei ipod (o classic, tijolão. não me venha com ipod touch celular-que-não-liga) até 2016, quando o resto do mundo já estava na segunda temporada do streaming. desconfio ter sido a última pessoa do mundo a baixar um torrent musical. o motivo? complicar minha vida, como sempre.
não é só prepotência, como parece. tem algo de nobre nisso aí, ser fiel ao que se acredita. e se tem uma coisa na qual eu acredito é fone de ouvido de fio.
TUDO em relação a fone sem fio me parece errado: pequeno, vou perder; ter que carregar, dor de cabeça; levar uma caixinha pra cima e pra baixo; deus me livre. isso sem nem entrar no mérito da qualidade: não existe engenheiro de som que possa me convencer que as ondas sonoras vão performar do mesmo jeito por bluetooth – na verdade, eu ainda não processei a existência do bluetooth como um todo –, e sou uma garota de graves.
então, imagine minha surpresa quando, de um dia pra o outro, os fios desapareceram. começou sorrateiro: primeiro com os headphones, atendendo a gamers e bodybuilders (não me importei, pois eu não era gamer nem bodyvuilder). até que a apple enfiou o pé na porta, como ela sempre faz, e os airpods marcaram o começo do fim da vida como conhececíamos até o momento (caso não esteja claro o quão pessoal essa questão é pra mim)…
de repente, os fios passaram a representar um incômodo coletivo que nunca havia existido, e que pra mim segue sem existir. os benefícios são vários: segurança, com eles, sei que ninguém me roubou; fácil de achar na bolsa; impositivo (eu QUERO que saibam que eu NÃO QUERO os ouvir) e, claro, graves. não foi uma terafa difícil evocar meus anos de revolta contra o sistema e portar meu fone de fio como uma arma!
até que ele quebrou. e todas as minhas certezas foram por água abaixo.
antes, contexto: eu usava aquele original apple (apesar de estar atribuindo a eles todas as mazelas da minha vida) de cabinho, conhecido por todos que já o usaram como o melhor fone do mundo. a única situação em que abri mão da minha ideologia e abracei o bluetooth foi pra praticar exercício físico: esse é o único contexto que consigo pensar em que o fio realmente é um empecilho. assim, encontrei o equilíbrio perfeito e meus dias – pelo menos no que tange o sonoro – fluíam tranquilamente.
até que ele quebrou. eu sabia que minha convicção seria posta a prova quando isso acontecesse, e dificilmente sobreviveria. dar 150 reais em um fone de fio em 2025 é maluquice! vai contra a maré dos avanços digitais como um todo. consigo bancar ser eu mesma a ESSE ponto?
e tem outra questão que me pega pessoalmente que é a coisa da moda. como escrava da aparência que sou, tenho muita dificuldade de lidar com esse movimento de objetos tecnológicos virarem acessórios fashion. isso quase me faz ter mais raiva das corporações do que o trabalho escravo, a degradação ambiental e todo esse papo. (eu disse QUASE)
quem institucionalizou isso, claro, foi a apple. houve um período em que nós como sociedade ainda vivíamos uma pequena janela crítica antes de se endividar que nem uns coitados. lembra da revolta quanto ao iphone sem botão, o carregador que não vem com o celular, as três câmeras gigantescas? ficou no passado. agora é comprar sem olhar o que, e incorporar na sua identidade goste você ou não.
o airpod foi um grande exemplo dessa anomalia. ele passou a representar muita coisa muito rápido, e se tornou impossível rolar o feed sem ver uma influencer no meio de uma quantidade absurda de branco – quebrada apenas por um matcha, e olhe lá – e seu desnecessário fone sem fio.
a gota da água foram os airpods max, os headphones da maçã. esses aí já nasceram um clássico: foi papo de dois dias desde o anúncio até toda a galera do streetwear aparecer com um no instagram, com a mesma equivalência em que se usa, sei lá, um sapato. quando todo mundo começou a ouvir tanta música assim? eu te respondo: nunca.
conversando com uma amiga da “moda de instagram”, ela me confessou que o airpod max era uma mão na roda quando seu cabelo acorda incontrolável e você não tem tempo de arrumar – a falta de sic aqui foi intencional, porque o pior é que eu concordo.
e aí que eu entrei em uma crise enorme sobre o que estamos fazendo e pra onde estamos indo como consumidores e os complementos físicos da identidade. consigo ser o que acredito que sou sem nenhum aporte material? e no fim das contas, será que isso realmente significa tanta coisa? quem fala mais alto, o grito ensurdecedor do coletivo ou as vozes da minha cabeça? qual é o preço justo pra um fone de ouvido com bons graves – e só?
tudo isso pra dizer que eu já comprei um novo fone. e ele não tem fio.
Esse foi o dilema da minha vida um tempo atrás. Passar raiva com fios que embolam sozinhos na mochila ou no corpo (ao fazer exercício)? Ou passar raiva com o fone sem fio caindo no balde d’água durante a faxina (talvez sumindo a caixinha quando mais se precisa)? Agora, esses grandes e bluetooth (de jogador de futebol saindo do ônibus) é que ainda me faltam testar. Colocar em mais uma lista de compras que não preciso.
estarei com os fios e apenas eles até o fim!!!! ✊🏼