o paradigma dos negros americanizados
qual a causa para tamanho desvio na rota racial? e porquê, na verdade, tá tudo bem
como muitos, eu encontrei a negritude em produtos culturais norte-americanos. depois de anos e anos me desvencilhando de tudo que remetesse à cultura negra pra ninguém lembrar que eu era uma – principalmente eu mesma –, algo finalmente ressoou comigo e me acordou do delírio do embranquecimento.
eu sempre soube que essa conta ia chegar. agora, eu estava livre: não alisava mais o cabelo, escutava majoritariamente artistas negros e conseguia até falar a palavra em voz alta. o que vim a perceber é que nada disso bastava: enquanto estivesse consumindo tanto inglês, eu estaria sendo negra errado, não o suficiente.
dezenas de livros depois, consigo ver o teor imperialista da coisa da coisa toda. mas, na época, eu só conseguia sentir a imposição de mais um modelo, dessa vez, o do “negro ideal”. quão distante isso realmente é da lógica da branquitude?
meu processo de despertar racial passou – o máximo que se passa, uma coisa dessas – mas a retórica da inferioridade dos “negros americanizados” continua. parece retrógrado dizer que a intolerância não ajuda instruir, mas com tantas pessoas em pontos tão diferentes de jornadas cujo único ponto em comum são as dores, talvez valha a pena reafirmar a validade do ponto de partida de cada um.
A comodidade da estética afro-americana
no começo do despertar racial, não tem nada mais confortável do que cultura de massa. o caminho mais fácil pra se passar despercebido é consumir o mesmo que todo mundo, o que por muitos anos foi a música pop e o rap americano. pra geração mtv/mix tv, de katy perry pra rihanna não era um pulo tão grande.
essa representatividade digerível fica mais clara quando lembramos que, enquanto eles tiveram a segregação, nós tivemos o mito da democracia racial. os afro americanos foram instruídos a se fortalecerem como povo, com bairros próprios, música própria e toda uma identidade, que só se solidificou ao longo de tantos anos à margem. no brasil, em uma falsa mistura equivalente de traços, fomos fagocitados.
a partir daí, tudo fica extremamente ideológico – um peso que pode ser difícil de carregar. o distanciamento de consumir um produto afro-americano traz a representatividade, sem muito da bagagem. uma transição suave.
isso é importante, porque o despertar racial é sem sombra de dúvidas a coisa mais dolorosa que já passei. você vive dois lutos simultâneos: pela vida que poderia ter tido e não teve; e por aquela que achava que teria, mas na verdade não vai. todas as suas verdades caem por terra e você vive uma despersonalização enorme, onde nada mais faz sentido. no meio de tudo isso e das consultas de psiquiatria que espero que você tenha tido condições de fazer, de onde esperavam que eu tirasse energia pra entender a mística gilberto gil?
Curva no caminho
depois de digerir a parte emocional do processo, intelectualizei o lado socio-comportamental, e vi como a cultura é uma ferramenta quase bélica. não foi um processo simples, e dada nossa (falta de) familiaridade com esse tipo de discurso, não o tratava ponto de partida. hoje em dia, no entanto, a conscientização está mais popular. artistas diversos diluem pílulas de conhecimento em seus trabalhos e nos vemos citando versos completos da conceição evaristo em uma terça qualquer – e todos, como raça, entendemos o swag do djavan. achei que aceitávamos equilibrar tudo isso e beyoncé.
até que eu ouvi o episódio do mano a mano com o grandíssimo paulo vieira, em que ele critica a ideia de wakanda. a argumentação é ótima: ‘daqui pra o continente africano é uma reta. passar pelos estados unidos é fazer um desvio para se chegar onde queremos chegar’, que é em uma ideia mais madura de raça. essa curva foi o que aconteceu comigo e com tantos outros, que nem nos demos conta quando ela acabou, e o ponto final – a consciência racial – tinha chegado. não foi restritivo; eu nunca deixei de consumir produtos norte-americanos. eles só deixaram de parar de significar uma válvula de escape ideológica.
mesmo antes de ouvir o podcast, eu já pensava na coisa toda um trajeto. há naturalidade nos desvios da rota, como em todas as outras, mas também há diferentes meios de locomoção, com seus benefícios e malefícios. cada um escolhe a estratégia mais apropriada para si; pra mim, não envolveu tanta brasilidade de primeira, porque era como tinha que ser.
esse conceito “wakanda forever” e tudo que é extremamente hollywoodiano também me é meio bobo, mas eu sei de onde eu estou falando – e também sei que nem sempre estive aqui. penso que lá no começo, quando minhas questões pareciam tão individuais, teria me dado o mesmo senso de “identitarismo-high” que reconhecer isso me dá agora: foi o orgulho de me reconhecer em produtos negros, sejam eles quais fossem, que me trouxe ao ponto de saber criticá-los.
somos todo reféns da difusão massiva de conteúdo norte-americano, em todas as áreas; o que podemos fazer é filtrar referências pela lente da nossa própria retórica e dominar o caminhar racial. hoje, entendo a metafísica do gil, e não foi porque alguém me disse. no mesmo contexto, também sei a do jay-z. e a da addison rae, já que estamos aqui.
você arrasa