na triste matemática do proletariado, o tempo no transporte público é subtraído do tempo de vida. mas se você é leitor, como eu, essa operação é na verdade uma soma, porque ler é, bem, nossa vida.
o tempo ocioso que o transporte público te dá é algo difícil de encontrar. mesmo se você estivesse em casa, totalmente livre, provavelmente preencheria essas horas com outra coisa. não estou romantizando acordar mais cedo nem chegar mais tarde, mas convenhamos: é o que nos resta. a situação nem parece tão ruim assim quando você vê como uma oportunidade de ler o que te interessa, enquanto alguém te leva pra casa.
desde que virei profissional do livro, as pessoas estão sempre se justificando quanto aos seus hábitos de leitura pra mim, como se me dissesse algo super importante sobre elas. não diz, exceto seu modelo de trabalho e de locomoção: se alguém está tendo dificuldades de “pegar o ritmo”, ou trabalha remoto, ou não usa transporte público com tanta frequência ou faz muitas baldeações no metrô e nem vale a pena abrir o livro (por essa, eu sinto muito).
sei disso porque, fora dos lugares habituais de leitura (cafeterias no centro), é onde eu mais vejo livros em um contexto em um contexto popular, e isso sempre me chama muita atenção. claro, ainda tem muito celular (também não é um universo utópico que confronte os resultados do retratos da leitura no brasil), mas sempre tem pelo menos alguém tentando – e isso me deixa muito feliz.
livros de locomoção têm características específicas, que mudam de pessoa pra pessoa e suas necessidades. as minhas são as seguintes:
não ser capa dura ou muito grosso (ruim de segurar e de carregar);
não ser muito denso (minha atenção não vai estar das melhores);
não ser muito grifável (não é sempre que estarei sentada);
não ser poesia (óbvio);
não ser de autoajuda ou dizer muito sobre meu momento atual (só se for no kindle. eu tenho uma reputação a zelar na malha ferroviária dessa cidade!).
uma coisa que eles têm em comum, e pra todos os leitores, é que fazem daquele tempo menos pior. passei a última semana assistindo os caminhos que cada um escolhe pra esse objetivo, e conto o que eu vi aqui.
p.s.: meu objetivo não é bem falar sobre a sinopse dos livros, e acho que o seu também não é saber. vou pular esse longuíssimo pormenor e partir para o que interessa, mais deixarei o link de todas as obras pra quem quiser se situar (site da editora, nunca amazon).
o deus que destrói sonhos - rodrigo bilbo
tendo em vista que acompanhar as listas de mais vendidos faz parte das minhas demandas diárias, a capa desse livro é algo que vai me assombrar por muitos e muitos anos – mas só ela. pela ilustração, sempre acho que é juvenil, clico pra ver a sinopse e descubro que não. até o próximo dia, quando ele está na lista de novo e eu faço o mesmo processo de novo.
meu cérebro se recusa a processar do que esse livro se trata, a definição “cristão” fala mais alto.
mesmo invictos nos rankings há tanto tempo, eu nunca vi um livro religioso fora de livraria de shopping – mesmo pegando a linha vermelha todo dia. comecei até a suspeitar que tinha um esquema de fraude nos números, como os sertanejos com o spotify (não seria nada absurdo), até que, no meio do horário de pico, eu o vi.
fiquei meio chocada com a edição. capa dura, pintura trilateral; quase me deu vontade de pedir pra segurar. depois de tanto tempo, foi quase como se eu estivesse vendo um famoso.
jojo moyes - um passo de sorte
a única coisa que sei sobre esse livro é que é da autora de “como eu era antes de você”, a história que botou suicídio assistido na discussão antes até do antonio cícero. hit em 2016, o livro conquistou o coração de mães mundo afora, inclusive da minha, e consequentemente o meu. não tinha nada mais atrativo pra mim nos anos de formação do que os livros da minha mãe; como a vida é óbvia. teve uma grande adaptação hollywoodiana, um dos meus primeiros “o filme é bem melhor”.
o livro teve uma sequência, que não agradou muito mães mundo afora, nem a minha, e consequentemente nem eu. perdi o contato com a autora até pelas prateleiras de mais vendido e fiquei surpresa quando pesquisei e vi que esse livro é de 2023. considerando que a autora tenha se mantido na linha de delicadeza da excentricidade, diria que essa foi a leitora vencedora do desafiao “leitura de locomoção” dessa edição.
um romance russo - emmanuel carrère
esse talvez seja meio roubo porque eu estava a caminho do trabalho e a pessoa lendo era funcionária da editora também. em minha defesa, eu vi o livro bem antes de ver o leitor: eu reconheço esse projeto gráfico em qualquer lugar.
carrere foi o grande mestre na minha formação em tradição francesa de autoficção, bem antes da annie ernaux e édouard louis entrarem em cena. esse, em especial, é um dos livros mais lindos de todos. sobre se apaixonar por um jornalista e assisti-lo ir atrás da próxima pauta enquanto você morre — sabendo que é o que você faz também.
como convencer alguém em 90 segundos - nicholas bootman
ele não abriu o livro em momento nenhum. só segurou contra o peito com a capa exposta ao longo de um trajeto de 40 minutos, sem se mexer.
olhos d’agua - conceição evaristo
aqui aconteceu algo que sempre acho curioso de acompanhar, que é a pessoa tirar o livro do plástico e abri-lo pela primeira vez do meu lado. como você entra em uma história diz muito: eu, no caso, pulo todo e qualquer apêndice textual. começo a narrativa na primeira palavra do primeiro capítulo, como pensou o idealizador. vez ou outra leio as epígrafes, mas sinto que me acrescenta muito pouco. prefácio, nunca. quando termino, voltou e leio como o posfácio número um. acho que ele briefa demais a experiência, a um nível que atrapalha, e é uma ideia péssima no geral.
a moça ao meu lado pensava diferente. ela passava as páginas com muito cuidado e leu cada palavrinha de tudo que viu — ela passou tanto tempo no sumário quanto eu em uma página cheia. como marca-páginas ela usava o termo de vacinação do gato, o que me divertiu muito. leitora interessante.
cupim - layla martínez
eu sofro de um severo caso de FOMO cultural. nada me desorienta mais do que não saber sobre o que as pessoas tão falando. quando eu vi meu amigo de ônibus (e se você leu esse texto sabe que ele não é nada meu, apenas um cara que vejo no ônibus) com esse título que eu nunca vi (apesar de parecer meu tipo) senti certo desconforto, sim; mas mais me preocupei com o que escreveria aqui do que dei atenção a isso.
até que, uns dois dias depois, ouvi maravilhas sobre esse livro em uma reunião. aparentemente as espanholas contemporâneas estão vivendo um Momento no mercado editorial brasileiro encabeçado por esse título, e quase me matou o fato de outro usuário de piercing no septo e sapato tratorado saber disso antes de mim.
meu exemplar está garantido, mas lerei em qualquer lugar menos no ônibus. eu que não vou deixar ele achar que venceu!
imagens estranhas - uketsu
quando eu bati o olho na capa do livro eu sabia que a leitora era ruiva. eu acertei.
cem anos de solidão - gabriel garcía márquez

esse leitor subiu e desceu nas mesmas paradas que eu e sentou na minha frente. o nível de aventura desse trajeto, pra mim, foi o equivalente a um velozes & furiosos – mesmo na faixa única congestionada às 8h30. não vi quando ele abriu o livro; só vi que era velho, e eu tinha um compromisso profissional em descobrir qual era.
hoje, eu sou uma garota quase exclusivamente de contemporâneos e lançamentos, com um clássico ou outro que me vem como referência de algum lugar. meu tempo de catálogo foi na adolescência, quando o tempo era infinito. agora, acompanhar a conversa demanda tudo de mim, então os leitores de sebo tem toda minha admiração.
tanta coisa pode vir de um livro de sebo que é inapropriado até chutar. as vestimentas do rapaz também não me diziam nada sobre o que ele poderia estar lendo. a agonia de descer do ônibus sem saber me consumiu. tentava pegar algo pelos fragmentos de leitura mas também não funcionou, só entendi que ele tava levando muito tempo nas páginas – principalmente em relação a mim, que lia verticalmente um original que já sabia que ia negar.
até que ele levantou, e eu pude ver que era o livro historicamente mais vendido em sebos – e não preciso de nenhum dado pra comprovar essa afirmação.
o perigo de estar lúcida - rosa montero
o semi sorriso de uma mulher quando acessa algo que achava que só era sentido e pensado por ela mesmo é inconfundível. eu sei porque é a sensação que eu passo 100% do meu tempo procurando.
a primeira vez que li rosa montero foi por esse livro, e não pela ficção, como muita gente. eu não perco nada que relacione criatividade e loucura, a ponto de achar que a novidade tinha se esgotado: seria apenas uma leitura legal. mas o que ela fez foi me convencer que eu não teria nem porque estar viva se minha mente fosse de outra forma. espero que seja o que esteja fazendo com as demais leitoras também.
Nossa eu amei muito! Só nao começo um romance russo AGORA porque acabei de começar um livro hoje e fiz promessas pra controle de ansiedade. Dessa vez vai ser só um por vez!
Já li cupim num clube de leituras. É ótimo sim!
E amo esse livro da Rosa Monteiro.
E ri do moço que nem abriu o livro hahaha.
Quanta leitura boa pelo caminho.
tudo de bom