a trajetória moderna do cabelo negro na televisão
como a representatividade capilar nas telas acompanha o discurso sobre o que é ser negro hoje
depois de quatro temporadas, syd finalmente tem uma folga. ela tira esse dia pra refazer as tranças, por que em que outro momento teria tempo pra uma atividade tão penosa? essa premissa por si só seria o suficiente para justificar as merecidíssimas indicações de ayo edebri, estrela de the bear, ao emmy de melhor atriz e diretora, na mesma edição da premiação.
roteirizado por ayo e lionel boyce, seu colega de cena, o episódio “worms” coloca um novo marco no que eu gosto de chamar de trajetória do cabelo negro na televisão, e vou te apresentar aqui hoje.
o cabelo sempre foi um elemento chave no entretenimento negro, porque ele é uma epitome das nossas experiências: todo o desconforto, poder, fragilidade e identificação que sentimos como figuras deslocadas está, de certa forma, impresso na nossa relação capilar. exatamente por isso, o cabelo tornou-se um recurso narrativo clássico pra ilustrar a vulnerabilidade negra.
dez anos atrás, shonda rimes revolucionou a televisão com séries em que todas as profissões de destaque eram exercidas por personagens negros. tinham médicos, advogados, políticos e nenhum traficante – algo que até o momento só era imaginado nos sonhos mais loucos do espectador. ela ainda precisava manter alguma verossimilhança, por isso, todas as mulheres nesses cargos tinham cabelos alisados, o que é totalmente compreensível pra época. até que a viola davis colocou uma cláusula muito particular no contrato da annalise keating, sua personagem em how to get away with murder: em algum momento, ela teria que tirar a peruca em cena. foi daí que nasceu uma das cenas mais impactantes do entretenimento negro até hoje.
o feito acontece no quarto episódio da primeira temporada de uma das grandes séries do velho testamento. antes disso, a annalise tinha sido retratada como a personificação do poder: uma advogada riquíssima que consegue se livrar de qualquer coisa. é justo em seu momento mais frágil — quando vai confrontar o marido branco sobre uma traição (WHY IS YOUR PENIS ON A DEAD GIRL’S PHONE?) — que ela resolve tirar a peruca e a maquiagem na frente do espelho, sem quebrar o contato visual com seu reflexo (e com o espectador) hora nenhuma. muito representativa pra época (do mundo e minha, como espectadora) essa cena liberou o poder catártico dos ritos negros — e o emmy da viola.

o discurso em torno do cabelo negro amadureceu nesse tempo, e na televisão também. apesar de tão bem resumido em uma só frase, o processo de syd para refazer as tranças não é simples, e não é só porque tudo nessa série é complicado — mas porque nosso cabelo também é. ele vai te dar trabalho – e tudo bem eu falar isso, porque não sou um estranho tentando fazer puxar assunto no mercado. são as peripécias desse empenho que estão sendo retratadas hoje, como uma manifestação racial mais madura e desromantizada. fugimos do alisamento, mas ainda somos submissos às nossas trancistas, barbeiros e lavagens de 5 passos.
no caso da syd, o pacote de cabelo acaba e a trancista sai pra comprar mais, deixando ela com metade da cabeça não-feita e uma menina de 11 anos faminta pra cuidar. e não é a primeira vez que a imagem da cabelo não terminado dá as caras: na verdade, ela se tornou a nova tradução da vulnerabilidade negra.
nesse mesmo ano, a diretora issa rae lançou o sucesso de bilheteria Um dia daqueles - com sequência já confirmada. no longa, as protagonistas se metem em várias confusões pra conseguir dinheiro para o aluguel antes do dia terminar. como se não fosse o suficiente, o trancista cede o horário da personagem da keke palmer para um cliente que pagou mais, e ela passa o dia rondando pela cidade um pano amarrado nas meias-tranças.
e eu jamais poderia esquecer de um dos meus episódios favoritos de Atlanta, “barbershop”, em que, em uma tentativa de cortar o cabelo, o Paper boi passa o dia vagando pela cidade com seu barbeiro e, adivinha? metade da cabeça feita.
essa brincadeira toda não passa da ficção emprestando do real. por causa do tempo de execução do serviço – ou da frequência, no caso dos rapazes – seu profissional capilar acaba virando seu maior confidente. são seis horas em média pra fazer uma box braids — e uma semana até o disfarce começar a sumir: vocês não tem como NÃO conversar, queira você ou não. acaba sendo um momento de comunhão bem forte, e isso é importante pra nós. aí entra em cena a figura do homem cordial: as fronteiras entre o profissional e o pessoal ficam diluídas demais e a coisa sai do controle.

se você é negro você sabe do que eu tô falando, nisso não preciso me alongar. atire a primeira pedra quem não tem uma história desconfortavelmente engraçada com o responsável pelo seu cabelo. nos meus seis fazendo trança cerca de duas vezes por ano, acumulei minha série de sátiras capilares – tanto que, antes de me perder em palavras, achei que esse texto seria sobre isso. vivi, inclusive, a figura da meia-cabeça, apesar de ter sido de uma forma bem mais respeitável: a trancista queria almoçar parmegiana mas me fez um belo turbante antes de irmos. mesmo assim, eu sentia a incompletude na minha cabeça, e enquanto a gente comia só conseguia pensar que minha vida estava nas mãos dela.
além de colega involuntário, quem cuida do seu cabelo também é, provavelmente, sua maior autoridade. ele detém o poder do que vai ser de você. um horário desmarcado é uma verdadeira tragédia; sua vida inteira foi organizada em torno daquilo. você não vai ter esse tempo de novo. e eles sabem. por isso os personagens de todas as histórias que mencionei se mantém em rituais capilares desastrosos; eles não têm outra opção. e é exatamente a comunhão forçada e expectativas contrariadas que os levam a descobertas necessárias. a jornada do herói por um ponto de vista afrocapilar!
o que eu quero dizer é que o que antes era um sinônimo pra dor e fragilidade hoje é representado exatamente pelos divertidos desdobramentos de suas complicações, e isso acompanha muito a noção de o que é ser negro hoje. isso está em séries alegres e educativas como black-ish, em a experiência negra é abordada com um conforto familiar em um episódio sobre transição capilar, com atrizes mirins realmente em transição; ou séries provocativas e cruas como insecure, em que a questão do cabelo já foi até superada e tranças alisamentos e laces estão no mesmo nível hierárquico de identidade (ah, a utopia fictícia!).
continuamos submetidos a longos processos capilares, a diferença é que eles dizem algo sobre nós; nossa identidade, comunidade. estamos confortáveis o suficiente com esses ritos pra explorar até seus lados negativos – algo a que o entrenimento negro, especialmente o humor, só tem a contribuir.