Maratonando a vida errada: o que perdemos com o streaming
como as novas formas de acesso contribuíram para uma des-evolução narrativa das séries de TV
um dia desses, eu tava voltando pra casa 5 da manhã de metrô. várias pessoas indo trabalhar e eu, mal conseguindo ficar em pé e com o lápis de olho escorrendo. algo nessa situação pediu um sex and the city. depois de comprar dois pastéis na feira que graças a deus já estava funcionando, foi o que fiz. escolhi um episódio aleatório, afinal, não ia render muito. eu precisava dormir antes de amanhecer: é minha regra pra me sentir menos mal com o rumo da minha vida nesses cenários.
o episódio acabou sendo um daqueles críticos pra o avanço da história, o que foi uma coincidência engraçada. o que era pra ser 20 minutos só pra pegar no sono, evoluiu pra um mês sugada pra dentro desse buraco que é a vida de nova iorquinas fictícias, minha quinta vez nessa brincadeira. essa foi a primeira reassistida em que não gostei tanto; achei as piadas artificiais e os dilemas bobos. ainda assim eu continuei, porque o que eu vi como coincidência quando cliquei exatamente no episódio em que a charlotte conhece o primeiro marido era, na verdade, o bom e velho desenvolvimento de personagem – algo que não é mais tão fácil de achar.
antes que o beatrizmos do dia comece, vamos deixar claro que eu não sou inimiga do avanço tecnológico, tenho uma alexa e tudo! o apego à tradição é desnecessário, eu sei, e estou me esforçando para superá-lo. mas a grande vítima desse texto, o streaming, mexeu com algo muito mais geral do que meus hábitos, que é a cadeira cultural no geral, e isso eu não sei se consigo relevar.
a primeira série que eu assisti foi gilmore girls, com 11 anos. eu alugava todas as temporadas em uma locadora perto de casa, e provavelmente fui a última pessoa do brasil a ter essa experiência. a série tem 7 temporadas, e lá pelas duas finais eu desbravei o maravilhoso mundo do torrent e não precisei mais locar. a partir daí, inaugurou-se uma era na minha vida em que eu consumia tudo que tinham adolescentes (e ela meio que dura até hoje). 8 temporadas, 22 episódios cada, 43 minutos; esse era o padrão.
eu sei, olhar pra esses números hoje em dia é completamente assustador. nem existe mais esse tempo, quem dirá pra gastar com tv. a essência do streaming, que é otimizar, no sentido mais amplo da palavra, abraça não só a parte do acesso, que se tornou mais fácil; mas do formato também. a coisa ficou mais breve, pontual: se em 10 episódios não deu pra falar, talvez não é pra ser falado.
acontece que esse é um jeito muito cínico e essencialmente mercadológico de olhar pra as histórias, principalmente se o que você procura, como eu, são vínculos profundos com coisas que não existem. eu quero que família retratada, pelo menos por aqueles 50 minutos, seja a minha família; a empresa em que o personagem trabalha também seja o meu emprego e, se ele acabou de passar por um término, que dor que sinto! esse tipo de conexão não vem de doses calculadas de acesso ao universo fictício: às vezes, eu preciso ver o personagem no mercado, sem motivo nenhum.
antes que assumam que toda minha revolta tem a ver com um programa que só fala sobre homens e sapatos (o que não seria um problema), voltemos à vanguarda da televisão moderna. Família Soprano foi a série que nos apresentou o desenvolvimento de personagem como conhecemos hoje. Ao narrar os percalços do chefe da máfia de Nova Jersey, David Chase mostrou uma nova forma de contar histórias, em que a complexidade dos personagens importa mais do que qualquer coisa. Foi ele que cunhou a ideia de continuidade associada à profundidade: apesar de interligados, os episódios foram feitos para serem apreciados individualmente.* então, quando ele diz que o streaming está acabando com a qualidade da televisão, a gente tem que escutar.
não acho que sempre tenha sido assim. no começo, a era do streaming deu uma refrescada no nosso catálogo de consumo, e por um tempo as coisas ficaram interessantes. seria hipocrisia da minha parte dizer que orange is the new black não me divertiu horrores! só que, de tão interessante, a fórmula quebrou: o acesso era tão fácil que surgiu o binge-watching, assistir tudo de uma vez. esse modelo reflete na construção narrativa, que agora precisa transportar o espectador até o próximo episódio. foi-se a ideia de apreço individual: a série é um conjunto. você já viu a terceira temporada de the bear?
o streaming não queria significar queda de qualidade – isso não combina com otimizar. então, em oposição a isso, surgiu a megalomania de qualidade, em que a forma fica tão rigorosa que ninguém tem um “a” pra dizer sobre a complexidade do produto. em uma belíssima matéria pra vulture, a crítica kathryn kanarendonk descasca esse movimento dos “filmes de dez horas”: impactante, refinado, mas não é tv. “edite seu material e tenha culhões de fazer um filme!”, disse minha amiga vivian, que como eu, só tem duas opções: viver 2002 ou a própria vida – ambas escolhemos o mesmo caminho.
no fim das contas, eu assisti a terceira temporada de the bear, que nem todas de tudo já lançado, na busca incessante que algo seja mais latente do que a realidade – e não encontrando. eu preciso de tempo com os personagens; preciso vê-los crescer. o quanto eu aprendo sobre eles me ensina também sobre mim, e é por isso que eu assisto qualquer coisa, pra começo de conversa. custa dar uma força para nós que não sabemos muito bem como viver sem manual?
*para mais sobre o método Chase, ver o excelente documentário Wise Guy: David Chase and The Sopranos, na HBO HBO Max.
é até engraçado que virou uma constante quando existe algum episódio focado no desenvolvimento de um único personagem as pessoas o chamarem de filler
há uma certa palidez e cinismo muito forte nessa onda de séries de dez episódios… falta espaço para os universos narrativos se expandirem e, em certos gêneros, isso mata a alma da série antes mesmo dela começar